Acreditei até que não morasse mais aqui, nessa grande rua onde aportei também a minha vida, imaginei por alguns dias que viesse aqui a passeio ou sei lá, mas de longe fitei a casa em que você habitualmente abria o portão nas tardes em que te vi, pra sair ou pra entrar com todo o seu mistério sob a minha curiosidade silenciosa.
Depois de dias sem te ver por alí passar com sua habitual presença, que se faz notar e que parece me atrair mesmo quando não te espero, foi olhar pra rua pra te ver passar e virar o rosto na minha direção, que como aqui já disse, atrai como magnetismo inexplicável de algo que eu não sei o que é, mas que há.
O teu olhar, para o qual não achei definição, que em geral é em certa parte cerrado, seja de sono ou de preguiça de arregaçar as pupilas para o mundo, sob aquele cabelo que procura cobrir-lhe um pouco a testa como que no mesmo esforço de poupar-lhe do que há no entorno, somado a aquela face que não sei bem definir se de inexpressividade por querer ou simplesmente por não ter preocupação alguma que lhe faça pesar os traços da expressão facial que sempre porta, me fez rir algumas vezes por concluir que aquele jeito de olhar é o olhar da meninice sua.
Teu andar compassado, parece agitar o ar num ritmo quase dançante, que se pode perceber e poderia ate mecanicamente se desenhar conforme se olha para o cano do seu tênis, que é pouco habitual, fazendo par e conjunto com as calças do tipo que sempre usa, por vezes discretas e por outras extravagantes, como no dia em que te vi e considerei que estivesse tornando, se é que daqui não é ou algo assim, usava calça verde, mas era um verde meio azul que dependendo de quem olhasse poderia parecer mais viva do que realmente era, mas em você ficava interessante.
Portava nas mãos um objeto que não sei dizer qual era, mas era semelhante e por isso julgo que devia ser primo ou parente próximo do "iô-iô", com uma corda que você atirava ao chão e ele então se projetava e fazia um barulho que por um momento achei ser dos teus passos, mas depois vi que não. Como de hábito acompanhei o teu andar até que paraste na habitual calçada, fechando os metros que dividem o nosso contato, onde você com aquela mochila nas costas abriu novamente o portão que te engoliu como que por ironia, sabendo simplesmente que eu alí tão perto de você lhe perdia não de vista mas para um portão que inoportunamente me deixava na sorte de qualquer dia lhe ver outra vez, sem nunca saber quando seria este dia.
Minha presença também foi notada por você talvez quando eu também notei a sua e não sei como pensou nisso mas há duas possibilidades para as quais dou valor de consideração.
Se fores daqui antes do que eu, eis que imagino ter se perguntado como nunca me viu, ou então que se fores gente nova por aqui talvez tenha achado legal que na vizinhança haja alguém de tão próxima idade assim. Aliás idade creio eu que seja tão próxima a ponto de que variemos em dois anos para mais ou para menos um do outro, mas não importa. Tivesse eu com você a chance do contato hoje quase impossível, sonharia em ter por ti e de ti metade do que tive com meu último romance, confesso que aí o portão não mais te engoliria e tomaria de mim por tempo indeterminado.
Mas o fato é que eu gosto das poucas vezes que te vejo e desejo sempre ver mais uma vez, ainda que sejam escassas e que durem pouco frente o espaço de tempo em que elas acontecem, por isso quando vejo-te, me ofereces inocência, pelo menos assim julgo, e eu faço questão de devora-la com olhos de comer presença e observar teus passos quase ilesos, que dessa vizinhança toda talvez só eu note, simplesmente porque nessa cidade onde as ruas só sabem vender ilusões a preços altos, eu sempre as compre a pagamento à vista.